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Crônica

#POLÍTICA

Carlitos e o discurso do cinema mudo contra a insensatez do século 21

Em “O Grande Ditador”, Charles Chaplin quebrou o silêncio com um pronunciamento ainda atual, que serve de carapuça para todos aqueles que acreditam que podem ser supremacistas

Fersen Lambranho, para Headline Ideias
#POLÍTICA14 de jan. de 238 min de leitura
Charles Chaplin reproduzindo o gestual de Adolf Hitler na Tomânia, um país fictício do qual se transforma no grande ditador. Foto: United Artists, 1940
Fersen Lambranho, para Headline Ideias14 de jan. de 238 min de leitura

O ano de 1889 foi marcado pela inauguração da Torre Eiffel, uma obra que inicia a engenharia moderna. Nesse mesmo ano, a capital do mundo, Londres, recebeu a iluminação, e o cinema ainda era um experimento.

Coincidentemente, no dia 16 de abril nasceu Charles Chaplin, em Londres, no dia 19 de abril nasceu meu avô, Atilano Lambranho, em Granada, na Espanha, e no dia 20 de abril, na Áustria, nasceu Adolf Hitler.

Os três tiveram suas mães abandonadas por pais bêbados. Os 3 foram extremamente pobres.

Meu avô, um mestre de obras, fazia bonecos para o Carnaval de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, para onde imigrou. Chaplin tornou-se um comediante, e emigrou do Reino Unido para os Estados Unidos. Hitler, um pintor de paredes que sonhava conseguir viver de pintar quadros, emigrou para a Alemanha, e lutou na 1ª Guerra Mundial, de onde saiu quase cego, afetado pela guerra química. É evidente que meu avô nada tem a acrescentar a esse texto, a não ser pela coincidência do signo – Aries – e do gosto pela arte, como os outros dois famosos arianos. Vidas paralelas, com meu avô representando os centenas de milhões de paisanos que foram impactados fortemente pelos outros dois.

Já no período da 1ª Guerra, e graças ao cinema nascente, Chaplin tornou-se o homem mais famoso da História, até então, por conta de seu personagem Carlitos, o vagabundo. Chaplin foi o primeiro grande astro global, imitado e admirado por representar o homem comum – ou melhor, um “Zé Ninguém”, como meu avô. Carlitos era o retrato tanto do imigrante pobre e desamparado que fez a América, como do subempregado das metrópoles que cresciam pelo mundo, do “funcionário” das repartições públicas, dos soldados da 1ª Guerra que enfrentavam máquinas para matança em escala industrial, etc. Quando o cinema era mudo, Chaplin conseguiu, apenas com gestos e expressões, transmitir o lirismo e o drama da natureza humana através da comédia.

Carlitos era uma composição simples: sapatos imensos, calça larga, chapéu coco pequeno, jaqueta apertada, uma bengala torta e um bigode mínimo. A incongruência desse conjunto fazia pulsar o coração da plateia.

Em 1918, já um artista consagrado, Chaplin criou seu próprio estúdio: United Artists. A partir de 1928, quando os grandes artistas dos filmes mudos tiveram que “falar”, Carlitos continuou mudo, impávido como sempre, em filmes de sucesso retumbante como “Luzes da Cidade”.

Com “Tempos Modernos”, de 1931, no qual fez uma crítica à indústria e seu impacto na humanidade, Chaplin “explodiu” as bilheterias em todos os países. O filme foi sucesso tanto na sociedade capitalista americana como na Russia comunista, tendo sido proibido em um único país: a Alemanha.

O filme mudo do Chaplin incomodou um outro personagem. Naquela época, um político com ideias supremacistas que, como Carlitos, usava bigode e roupas ridículas, estava em ascensão na Alemanha. Hitler, o artista frustado, tinha em Chaplin um dos seus exemplos de decadência da sociedade, da mesma forma que os judeus, os artistas modernos, os ciganos... Não seria de espantar que Hitler visse em Carlitos a sua caricatura pelo avesso.

Hitler moveu toda a Alemanha com um discurso de ódio, assim como Chaplin conquistou multidões pelo mundo com imagens de ternura e riso. Em 1940, enquanto a Alemanha avançava sobre a Europa, Chaplin levou seu Carlitos para viver como um judeu num país imaginário, no qual havia um partido e um ditador (sósia do Carlitos) inspirados no nazismo.

Carlitos, o eterno vagabundo, tinha sobrevivido 10 anos ao cinema falado – seus gestos e olhar, uma linguagem universal, eram mais que suficientes pra contar dezenas de histórias. Chaplin, porém, sabia do risco que o mundo estava correndo com a ascensão de Hitler. Decidiu, então, levar seu Carlitos ao suicídio, e permitiu que este falasse no final do filme “O Grande Ditador”.

O discurso do último ato de Carlitos sintetiza 25 anos de um personagem que encantou o planeta. Chaplin tinha a responsabilidade de quem sabia que grandes verdades são transmitidas na comédia. Ali, naquela cena, o cinema mudo morria junto com Carlitos, o primeiro personagem pop da História.

A mensagem de Carlitos não se apagará nunca, pois está eternizada em cenas que, até hoje, são sinônimo da Sétima Arte. Impossível assistir a um episódio do vagabundo sem se emocionar, rir e se encantar. Talvez este seja o motivo pelo qual, durante o pós-guerra nos EUA, Chaplin tenha sido perseguido, por tantos, como comunista.

Cartaz de divulgação do filme The Great Dictator (O Grande Ditador). Imagem: United Artists, 1940

O discurso de Carlitos, na única vez que sua voz foi ouvida ao final de “O Grande Ditador”, ainda é atual, e serve de carapuça para todos aqueles que acreditam que podem ser supremacistas, ou que existe justificativa para ditaduras.

A única fala de Carlitos, passados 80 anos, continua necessária em um mundo onde tanques ainda invadem um país vizinho; gente ataca, como uma horda de bárbaros medievais, o símbolo maior da democracia no país mais rico do mundo (Capitólio, nos EUA) ou na Praça dos Três Poderes, em Brasília; fanáticos acampam em portas de quartéis, pedindo intervenção militar em governos eleitos democraticamente; governos , mesmo democraticamente eleitos, se arvoram em querer controlar ou arbitrar a liberdade de expressão; algoritmos espalham inverdades na busca de monetização de audiências; e outras sandices que assistimos neste início de século 21.

Quando finalmente falou, o doce vagabundo, que dominou a comédia na aurora do cinema, não fez uma piada ou uma graça. O impacto do seu discurso foi tamanho que, em 1941, Franklin D. Roosevelt pediu para que ele o repetisse em sua terceira posse como presidente americano.

Segue abaixo o discurso que foi o canto do cisne do cinema mudo:

“Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio… negros… brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem… um apelo à fraternidade universal… à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora… milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: ‘Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia… da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais… que vos desprezam… que vos escravizam… que arregimentam as vossas vidas… que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!’.”

* Fersen Lambranho é presidente do conselho da GP Investments e G2D Investments.

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